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sábado, 6 de novembro de 2010

Lisboa em Prosa (10)


“Lisboa é o único sítio do país onde se pode encontrar a província em estado puro. Como é ela que dá o tom ao país, a província chega-me de lá depurada e aumentada. “Também é bonito”, dizia um excursionista lisboeta quando o carro eléctrico onde eles davam a volta à cidade para não a verem, passou em frente do Jardim Botânico. “Sim…- concordou outro – mas o nosso da Estrela…”. É muito pândego este alfacinha, para não passar por provinciano acha-se na obrigação de não admirar como, segundo ele, imagina faz o provinciano da província na sua Lisboa. Como sempre, os exteriores tocam-se mais ainda, assim prefiro de longe a admiração lorpa da pobre grande gente da minha aldeia. A admiração é o princípio da sabedoria.”

Eduardo Lourenço

sábado, 19 de dezembro de 2009

Lisboa em Prosa (8)


“…Buzina-se (e sobre isso já alguma coisa se tem escrito) logo que o sinal verde se acende. É o microcosmo do ódio negro. A superpressa. Apita-se, para passar de qualquer modo, quando o frenesim pica o condutor. E crepitam, de parte a parte, os enxovalhos.
Um carro vai arrumar: buzina-se. Vai arrancar: à mesma o klaxon estrondeia. Nem civismo, nem educação, nem cordialidade. Um pobre (semipobre) de Cristo, que desemboca de uma rua lateral e enfrenta a torrente do trânsito, tenta a sua sorte por várias vezes: buzinam-lhe, como quem lhe escarra na face.
O egoísmo mais tosco campeia nas ruas abaladas de veículos.
Ora a buzina existe para alertar, mas em situações de perigo. Só para isso. Até para assustar peões ela é odiosa”.


Urbano Tavares Rodrigues

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Lisboa em Prosa (7)


“Lisboa crescera por cima das colinas, saltitando, talvez lembrada do seu tempo de mouros e guerras: do Castelo à Graça, da Graça à Penha de França, daí ao Alto do Pina e à Picheleira. Só mais tarde avançara pelo vale do que seria a Almirante Reis, da mesma forma que as Avenidas Novas só avançaram quando a implantação da república veio expandir a burguesia: não a burguesia industriosa; a burguesia de pequenos proprietários, senhorios urbanos, profissionais liberais, na profissão e na política, professores universitários.
Lisboa sempre teve esses dois tempos de crescimento: um crescimento popular que saltita sobre as colinas, um crescimento burguês que se espraia em avenidas planas, de fácil transporte.
Nesse avançar pelas colinas se teciam ainda os encantos literários do Eça, a Penha de França, João da Ega, no Alto do Pina e na Picheleira se vislumbrando os Olivais, Carlos da Maia”.


Maria Isabel Barreno

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Lisboa em Prosa (6)


“Depois de uma enfiada de ruas lôbregas aparecia um bocado de Tejo, passavam-se os arcos, as antigas portas, o lavadouro público encostado à muralha dos comboios e penetrava-se no coração do bairro. Triste e cheio de armazéns! O vinho, os panos e os tabacos faziam a riqueza de grandes industriais que não viviam nele. Dois mosteiros antigos, de uma imponência morta, despercebida, colocados a um extremo e outro da artéria irregular que atravessa toda aquela baixa, lembravam um estranho passado: tempos elegantes e piedosos, que os grandes entrepostos e fábricas do presente sepultavam sem sequer negar”.


Irene Lisboa

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Lisboa em Prosa (5)


“Mas senhores! Já não se vende peixe pelas ruas! Acabaram-se as varinas!”

Desapareceram, sumiram-se das ruelas de Lisboa, apesar de tão enaltecidas por gerações e gerações de jornalistas e até por grandes poetas. Estou a lembrar-me de um agora esquecido que se chamava Carlos Queiroz, e não hesitou em escrever, em quintilhas de improviso, um poema de circunstância que começava assim:

Ó varina, passa,
Passa tu primeiro!
Que és a flor da raça
A mais séria graça
Do país inteiro.

Quase ao mesmo tempo, eu chamava-lhes “sereias de sal”. E alguns anos antes, o Almada dizia, já não sei onde, que “elas traziam o mar nos aventais”.


José Gomes Ferreira

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Lisboa em Prosa (4)


“Há vozes e cheiros a reconhecer – cheiros, pois então: o do peixe de sal e barrica nas lojas da Rua do Arsenal, não vamos mais longe; o da maresia a certas horas nas docas do Tejo; o do Verão nocturno dos ajardinados da Lapa; o dos armazéns de aprestos marítimos entre Santos e o Cais do Sodré; o do peixe a grelhar em fogareiro à porta dos tascos de recanto ou de travessa, desde o Bairro Alto a Carnide; há, no Inverno pelas ruas, o cheiro fumegante das castanhas a assar nos fogareiros dos vendedores ambulantes.”

José Cardoso Pires

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Lisboa em Prosa (3)


“Lisboa chama ao compromisso. Lisboa. Soletro-te o nome e lá estás, naquele cotovelo da rua onde a rua forma uma lomba e eu digo, não é possível! e tu abres os olhos e sorris o sorriso cândido de todas as ofertas, e dançamos nesse baile antigo, indiferentes a quem nos observa, contemplando-nos, corpo no corpo, arfantes e aflantes, e dançamos na noite de uma vida inteira, e quando te penso és uma rapariga debruada de sol numa janela de flores”.


Baptista-Bastos

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Lisboa em Prosa (2)

“Presépio, anfiteatro, cais dum destino, plano inclinado por onde há séculos um povo e uma alma parecem escoar-se a caminho de outros mundos e paisagens, do pão amargo sobretudo – Lisboa é este rio imenso, este horizonte de apelos sem fim, e não se pode ter nascido aqui, vivido aqui, ou ser-lhe assimilado, sem lhe sofrer o influxo, sem ficar para sempre, marcado duma vocação, dum desgarramento e fatalismo, dum anseio de partir e tornar, duma sensual melancolia”

José Rodrigues Miguéis

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Lisboa em Prosa (1)


Referindo-se à Lisboa de 1500:

“Era a Lisboa ardente e sequiosa, de escassos chafarizes, à beira dos quais o povo e os escravos brigavam pela vez; dos açacais com seu asno e os quatro cântaros engradados, apregoando a água pelas calçadas íngremes; e das mocinhas negras, quase nuas, que a transportavam e serviam com as airosas quartas. Era a Lisboa honrada e mosteirosa dos mesteres esquecidos – atafoneiros, regatões, gibeteiros, esparaveleiros e desses escrivães do Pelourinho Velho, que, abancados às mesas, redigiam, ao sabor dos fregueses, cartas de amor, requerimentos, versos, discursos, epitáfios - , “coisa que em parte alguma das cidades da Europa eu vi jamais”, diria o viajado Damião de Góis.
Era a Lisboa policroma dos faustosos mercadores de toda a Europa, entre os quais predominavam os elegantes florentinos, reluzente das armas cavaleiras e negrejante de hábitos monásticos; e ainda a Lisboa dos moiros – alvanéis, azulejadores e ceramistas – que nas tardes de festa bailava e ondulava aljubas alvas, ao som dos alaúdes e pandeiros”.


Jaime Cortesão